quinta-feira, 3 de novembro de 2016

The Depression Diaries, nº 57 - Um breve olhar na minha existência

Aqui vai um poema sobre o que andou e anda acontecendo na minha vida:

eu não tenho mais ninguém pra conversar
nem praticamente amigos
meu pai morreu e eu não derramei 1 lágrima
eu continuo sendo um fardo pros outros
não tenho o mínimo conceito de pessoalidade
a maior parte do tempo eu nem sei onde eu tô
eu odeio mudanças
e vou fazer uma mudança
literalmente
minha casa não vai ser mais minha casa
e vou ter outra casa que vai ser minha casa
e eu só penso o tempo inteiro que eu preciso morrer
então eu assisto seriados e filmes pra me distrair desse pensamento
e não muito mais do que isso
eu tenho 23 anos e ano que vem vou ter 24 e depois 25 e em seguida 26
mas não vou ter tido vida nenhuma
eu estou em estado vegetativo e quase ninguém percebe
ninguém luta por mim o suficiente
ninguém vai além de um esforço pequeno
acho que eu acabei ficando assustadora demais
então eu que me foda
enquanto isso só gasto tempo com coisa inútel
como eu
que continua se fodendo pelos outros, pelos meus transtornos,
pelas coisas que assisto, por mim mesma por não saber
quem eu sou
o que eu estou fazendo aqui
do que eu gosto e não gosto
tal como nascer de novo
talvez eu gostaria
mas é só um tiro no escuro
e eu não me importo o suficiente pra tentar.

domingo, 14 de agosto de 2016

The Depression Diaries, nº 56 - Depois de mim, o dilúvio

Eu sinto que meu tempo tá acabando. Acho que esse mundo não me pertence mais. Tudo parece muito familiar mas ao mesmo tempo estranho, estrangeiro. Nem eu mesma pareço ser real. Eu toco nas coisas ao meu redor, toco na minha pele, vejo fotos, deito na cama e ainda assim parece que em algum momento alguém vai entrar e dizer que tudo isso é mentira, criação de algo ou alguém. Eu não sei como aprender a saber quem eu sou porque tudo que eu assumo pra mim parece errado, parece qualquer coisa menos eu. Eu achava que meu maior medo era o esquecimento; morrer e ser esquecida pelas pessoas que eu tenho afeto, ser só mais um arranjamento de átomos que passou por aqui e segue para se tornar outras milhares de coisas. Não. Cheguei a conclusão que o esquecimento é a melhor coisa que poderia me acontecer. Se eu tivesse a chance de desaparecer como ser humano, sem ninguém lembrar de mim, sem ninguém sofrer por minha causa, eu a agarraria sem pensar 2x. Talvez algumas pessoas estejam quebradas demais pra serem consertadas ou no mínimo ter suas partes coladas de volta. Talvez eu tenha mergulhado fundo demais aqui. Eu tento lembrar quem eu era cinco anos atrás e não consigo lembrar de absolutamente nada. Quem eu era? O quão desapontada estaria a eu de cinco anos atrás com a eu de agora, 2016? Eu queria ter podido proteger aquela garota que ainda conseguia ter sentimentos, que tinha planos, que tinha amigos com quem podia contar. Sinto muito que a eu do passado tenha que ter crescido do jeito que cresceu, que ela tenha se tornado eu, utilizando o esquecimento como válvula de escape. Nada disso parece mais coerente e eu continuo levantando e me alimentando e me deitando novamente como se houvesse um propósito. Os amigos que afastei pro próprio bem deles estão vivendo a vida deles muito bem, e eu fico muito satisfeita com isso. Eu quero que eles sejam felizes, já que eu não posso. Eles não merecem a nuvem negra em cima da minha cabeça contagiando os ambientes, nem minha família; por isso minto. Eu não sei mais ser quem eu sou, e porque eu não sei quem eu sou, eu apenas flutuo na existência enquanto consumo oxigênio. Eu vivi mais um ano sem motivo nenhum, sem serventia alguma. Quantos anos eu vou continuar sendo essa pessoa em estado vegetativo que anda e usa seriados pra se distrair do fato de que só quer morrer? Porque eu? Porque minha mente teve que nascer desse jeito, com esses defeitos? Eu nunca pedi pra ser borderline ou ter depressão. Eu vou estar na mesma situação de agora neste dia no ano que vem? Quantos anos mais essa doença vai me roubar? A maior parte da minha juventude ela já levou. Eu não ligo pro meu sofrimento, eu posso suportar qualquer nível de dor necessário, mas não suporto ver outros doendo-se por minha causa. Por isso o esquecimento. Talvez de um jeito parecido de Eternal Sunshine of a Spotless Mind porém em coletivo. Eu só quero que as pessoas me esqueçam, me deixem desaparecer de maneira indolor das vielas de suas memórias. Que me deixem virar uma história que quase ninguém sabe contar, me deixem virar uma lenda urbana, uma figura, uma entidade; qualquer coisa que seja a coisa que eu nasci para ser.

"Ne cherchez plus mon cœur; des monstres l’ont mangé." 
— Charles Baudelaire, The Flowers of Evil

domingo, 26 de junho de 2016

The Depression Diaries, nº 55 - Noises

Eu sei que disse que não ia mais escrever aqui sobre minhas doenças etc, mas eu faço a porra que eu quiser. 


Então, quando eu pensei que eu tinha atingido o fundo do poço, descobri que ele tinha um porão e nesse porão havia 15 toneladas de chorume que é aonde eu me encontro no momento. Eu não me comunico mais com meus amigos, não tenho mais faculdade, não tenho motivação pra nada (não é novidade mas foda-se), não saio mais de casa e provavelmente meu pior pesadelo vai se tornar realidade (ficar branca, yikes, te amo pele preta) pois não tomo sol. Eu me afastei de todo mundo que eu podia, tentei arranjar qualquer coisa pra me distrair (mostly dramas coreanos), eu ainda vou ao psiquiatra e depois volto pra casa pra ser miserável em paz. Ah, também o fato que eu meio que já sabia, mas agora é oficial™ de que tenho transtorno de personalidade borderline. Talvez seja por isso que ninguém nunca me suportou por muito tempo. E também seja culpada de eu ter batido em muita gente na escola. Eu não vou conseguir me livrar disso, literalmente até eu morrer eu vou ter esse transtorno. E me dói e me deixa com vergonha o fato de que eu sempre vou precisar das pessoas mais do que elas precisam de mim. Eu queria ser independente, e não ficar aterrorizada quando pensar que algum dia vou ter que seguir a vida sozinha. A minha existência aqui não faz sentido, é como um bug no software de um computador. Eu penso em morrer desde os 14 anos e tentei morrer aos 14 anos e agora eu me vejo aqui com 22 anos e sinto como se eu fosse Alexander Hartdegen (de "A Máquina do Tempo") e tivesse parado numa época distante, onde a civilização atual é completamente diferente de mim. Você pensa "talvez seja hoje que eu terei coragem de finalmente fazer isso" e pra mim tem sido assim todos os meus dias nesse mundo onde eu nunca pensei que estaria. É quase como se tivessem me jogado para os lobos, certos de que o fato de eu ser um leão me protegeria, mas eu só me protejo das coisas erradas. Todas as minhas amizades parecem indo tão bem que fico satisfeita por elas e triste por mim. Eu que sinto uma saudade do caralho delas, mas é melhor que eu fique sozinha do que causar problemas. E claro que eu lembro que mês que vem é aniversário de. Minha mente poderia ser boazinha comigo só uma vez e me deixar lembrar qual foi a última vez que eu abracei meus amigos, eu só queria essa lembrança dos ultimos 6 meses. Estou criando teorias que pretendo escrever em artigos sobre como o isolamento social não é uma coisa tão ruim assim, como boa pretensiosa que sou. Meu gato e cachorro estão bem, minha mãe também e família em geral, que eu agora tenho tendência a passar vergonha na frente deles porque já não basta ser a não-hetero dessa linhagem. Se algum dia meus pais lerem alguma parte disso, saibam que eu sinto muito por todas as minhas crises e ataques de raiva e remédios que fiz vocês comprarem porque eu juro que eu queria ser como as outras pessoas, mas tem tanto barulho na minha cabeça... o barulho nunca cessa, e quase sempre eu não consigo respirar porém continuo viva, despite everything. *gestures vaguely*

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Para: Jaciara

Há tantos anos dos quais eu não consigo me lembrar de nada além das coisas ruins que nos aconteceram, Jaciara. Eu comecei a reconhecer os nossos anos que se passavam através de todas as desgraças que nos atingiram. Sinto muito que eu não consegui ser mais forte pela gente. Sinto muito que eu não consegui proteger você nesse mundo. Me dói saber que não há ninguém pra escrever esse texto pra você além de você mesma. Você passou por tanta coisa e sobreviveu, mas a cada dia está mais dificil de continuar nesse rumo. Você vai me perdoar se eu finalmente desistir de nós? Eu espero que sim. Às vezes eu acho que você não existe de verdade, que somos apenas parte de uma simulação holográfica com o intuito de observar a decadência e fragilidade humana. Eu sinto muito que você não tem nenhuma motivação pra continuar vivendo. Sinto muito que você perdeu a garota que você era antes de ficar doente, que você não lembra mais quem é ou quem gostaria de ser. Sua dor é minha dor, e ninguém nunca vai te compreender tão bem quanto eu. Nós só temos nós mesmas pra se apoiar, você sabe que não queremos ser um peso pra ninguém. Eu sinto muito que seu futuro virou pó porque você não conseguia sair de casa. Sinto muito que você tem que cortar sua própria pele pra evitar fazer algo pior. Sinto muito que você afastou quase todos os seus amigos pra evitar que eles vejam seu sofrimento e, por tabela, sofram também. Eu gostaria de lembrar como você era, lá antes da doença, mas minha memória só piora a cada dia. No entanto, sei que algum dia nós já fomos melhores do que somos hoje. Nós eramos cheia de esperança e ambições, e por um tempo isso foi a melhor coisa que nos aconteceu. Jaciara, eu sinto muito que eu tentei nos matar duas vezes. Não foi por egoísmo, eu juro; Eu só queria conseguir um fechamento, uma conclusão pra tudo isso que a gente tem vivido. Eu queria poder voltar no tempo e te dizer pra não ficar doente, pra ser mais forte, pra lutar por nós. Eu te diria tudo que você já perdeu, que você já perdeu tudo, então você não se entregaria tão facilmente a essas doenças. Talvez a eu que vivia naquele momento tivesse mais disposição de lutar. Lutar por nós, pois ninguém lutou por nós, por mim, por você, Jaciara. É tão fácil se acostumar com o meu empurrão pra fora da minha vida que lutar contra se torna meio imbecil de se fazer. Sinto muito que eu cheguei nesse nível tão alto de ódio por você, Jaciara. Às vezes eu digo a você, a mim mesma, que se eu me odiar bastante vai ser mais fácil quando eu resolver pôr fim em nós. Eu espero que um dia você possa me perdoar por tudo que te fiz, espero que você não se olhe no espelho e tenha vontade de quebrá-lo para não ver seu reflexo. Jaciara, eu espero que um dia você não odeie tanto viver nesse mundo e se sinta uma alien não importa onde estiver, como se estivesse no universo errado. Principalmente eu espero que me perdoe pelas decisões que eu fizer por nós. 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

The Depression Diaries, nº 53 - A arte de se matar e se salvar

A primeira vez que eu tentei me matar eu tinha 14 anos. Eu não sabia de porra nenhuma sobre o que estava fazendo, mas a intenção era a de tentar morrer. Tomei uns remédios que não fizeram efeito nenhum, e segui vivendo infelizmente. Vai completar 10 anos no próximo ano. A segunda vez que eu tentei me matar eu tomei uma cartela de remédios pra dormir. Não funcionou, como vocês podem ver. Foi ano passado. Ainda assim, ainda estou aqui.

Inclusive ano passado, minha melhor amiga tentou se matar. Se eu não fosse a porra de um robô que não sente nada sobre nada, eu certamente teria sentido algum nível de desespero. Eu me preocupei, claro, mas não sei como empatia se parece, qual a sensação dela. Então eu me corto, pois pelo menos esse sentimento da dor aguda eu consigo ter. Meu controle sobre as coisas é limitado, e isso é algo que eu consigo controlar. É um erro comum das pessoas acharem que pessoas doentes querem uma palavra de incentivo, um tapinha nas costas com "fique bem logo". Outro erro é acharem que a gente precisa de salvação. Ninguém pode me salvar a não ser eu mesma, e eu já aceitei isso. Há dias em que construo mil muralhas ao meu redor para me defender e há dias em que eu poderia ser empalada que eu não daria a mínima. Salvar não é suficiente. Como se salva alguém do que está na cabeça dela mesma? Vencer a guerra é fácil, o difícil é continuar vivendo depois de acumular tantas cicatrizes de batalha. Os traumas não vão embora e sempre há fantasmas esperando para assombrar, alguns que nós mesmos criamos. As vezes nós somos nossos próprios fantasmas, assombrando nós mesmos por todas as coisas que não fizemos e todas as coisas que não nos tornamos.

O mito do herói no cavalo branco pronto para o resgate é bem diferente na vida real. Não se precisa da porra de um herói pronto para o nos salvar. Você quer fazer propaganda do quão bondoso você é por amar alguém que está debaixo de cinco toneladas de merda? Essa glória não é tua para obter. A questão é que na maior parte do tempo o que precisamos não são soluções imediatas ou atos de bravura, provas de amor. Quando você fica doente você se acostuma a esperar. Nós só não queremos esperar sozinhos. Não queremos ficar sozinhos. Não queremos ser esquecidos. O medo do esquecimento tão fácil quanto o resultado de 2+2 nos leva a fazer coisas que não fazem muito sentido se você observar bem, mas tem tudo a ver com controle. Eu só estou tentando controlar o que eu posso, eu só estou tentando não perder todo mundo. Ou só morrer de vez, sei lá. 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

The Depression Diaries, nº 52 - Sobre o sangue na minha boca

1.

Eu vou te contar sobre o leão. Não precisa ter medo, nem escolher um vencedor nesse exato momento. Se você fechar os olhos e conseguir focar sua atenção através dos ruídos da vida moderna, você vai conseguir ouvir o leão. Meu leão. Sim, meu. Como alguém consegue aprisionar um ser selvagem, deve ser a questão. Basta deixar ele levar um pedaço de você. Agora, ele é tudo que eu tenho. Houve uma enchente dentro de mim que levou tudo o que eu tinha, todos que eu tinha. Obviamente eu sobrevivi, o pior castigo de todos. Eu sempre sobrevivo. Meu leão se certifica pra que isso aconteça.

2.

No único sonho do qual eu consigo me lembrar no último ano, eu encaro meus pés e eles estão sobre uma folhagem escarlate que fazem cócegas. Eu levanto meu rosto e avisto uma casa amarela, com dezenas de pessoas do lado de fora dela — eles estão dando uma festa. Assim que começo a me aproximar, reconheço todos os rostos. Todos os amigos que fiz durante a vida, toda a minha família, e até mesmo meus bichos de estimação estão lá, rindo, comendo e contando histórias sobre como o governo da nossa cidade é medíocre. Eles não me viram ainda. Quanto mais eu me aproximo com meus pés agora sobre uma grama quase neon, menos eles parecem notar que chego lá. Viro minha cabeça algumas vezes; nada. Eu toco alguém; nada. Eu tento derrubar uma mesa; nada. Uma mão em chamas agarra o meu braço e só deixa uma marca. Antes que conseguisse me virar, eu desmaio. Todos se amontoam ao meu redor. Eu acordo.

3.

É um cometimento integral. Eu acordo, meu leão está lá. Eu tomo banho, eu como, eu vejo tv: meu leão está lá. Meu leão senta do meu lado no ônibus, meu leão senta do meu lado na calçada quando eu não consigo levantar de tão bêbada. Você deve pensar que ele é um bom leão. Não se trata disso. Questões sobre o bem e o mal não importam pra ele. Nem pro universo. Ele estava lá antes de mim e vai estar depois de mim, assim como meu leão teve outro alguém antes de mim e terá outro alguém depois de mim. Somos massa e átomos que se reciclam, e nessa mistura acabam se reciclando dores. Às vezes eu acho que essa é a explicação da minha tristeza sem motivo; toda essa tristeza é a tristeza de milhões de outros seres que viveram antes de mim e confiaram em mim o suficiente pra saber que eu conseguiria carregar. Bem, fodam-se vocês. O universo não se importa em ser justo, e eu não me importo em ser educada.

4.

A pior parte de se sentir miserável o tempo inteiro por tanto tempo é que você não consegue mais lembrar como era estar bem. Não digo feliz, pois faz anos que eu não sei o que isso significa. Eu tenho memórias de momentos em que pareço não estar lá, que era outra eu, era outra eu, eu me pergunto se algum dia eu poderei ser ela novamente. Ou alguém melhor. Ou qualquer outra pessoa. Meu leão me diz que é impossível, mas que se foda ele. É como brincar de roleta russa com sua própria mente, você morre de qualquer jeito. Você morre, mas continua vivendo: a pior tortura existente. Você morre e nem sente nada. Você morre e nem mesmo chora. Você morre e ninguém percebe. De repente você entende toda a dor que Icarus sofre quando o passáro arranca o figado dele todos os dias e todos os dias o fígado cresce novamente. Você se torna Icarus mesmo sem perceber. Há mesmo um castigo pra quem voa perto demais do sol ou a humanidade inventou isso? Não faz diferença. Minha anestesia suporta tristeza, pássaros comedores de fígados, vídeos de animais fofos, morte de parentes, filmes extremamente tristes, socos na cara. Não se preocupe, eu deixo meu corpo como objeto científico.

5.

Lá fora há pessoas que me amam. Não muitas, mas algumas com certeza. Eu tenho certeza disso. Até meu leão tem certeza disso. Mas cara, como minha mente gosta de ter expectativas. Está encravado no software do meu cérebro, impossível de remover nem mesmo com um reboot total. Eles me amam, mas não do jeito que eu preciso. Eles me amam, mas não de modo que salve minha vida. O amor deles não alcança minhas mãos, ele me atravessa e me marca, porém me escapa. Não é obrigação das pessoas me amar do jeito que eu quero. Contudo enquanto isso, meu leão continua sendo a única coisa real. Minha constante, minha rocha. Eu lembro de todas as faces que amo e não sinto nada, mas sei que amo. Todas as vezes que as avisto eu as encaro como se fosse a última vez que eu fosse vê-las. Por que todas as vezes pode ser a última vez. É como viver a vida de um doente terminal, e ter a impressão que a qualquer momento você vai desaparecer da face da terra. Mas você nunca desaparece. Você continua vivendo como se todo dia fosse ser seu último; sua última refeição, sua última risada, seu último olhar pra alguém que você ama tanto que daria a vida por ele num piscar de olhos. Não sei se você está conseguindo me compreender direito, a questão é que eu não me importo se eu vou partir o coração delas. E isso parte o meu coração.

6.

Meus dedos fazem movimentos circulares sobre minha pele na cama, esperando que assim eu consiga não dar mais atenção à fera. Às vezes meu leão se afirma como o próprio diabo, e então torna-se ele. Eu consigo sentir suas garras arranhando meu interior, criando uma fome de auto destruição. Olha, não há nada poético nesse sangue. Eu abro minha pele na intenção de impedir o diabo de alcançar a liberdade; ele vislumbra o mundo que ele conquistaria pelos buracos que faço na minha carne, então ele se acalma o suficiente pra que eu descanse. Minha guerra é minha guerra, e eu a lutarei enquanto não aparecer ninguém pra me convencer do contrário. O contrário não é muito promissor, também. Então, quem você acha que é o vencedor dessa historia? Eu ou meu leão? Eu ou o diabo dentro de mim? Lembre-se que o único sangue que eu tenho nas minhas mãos é o meu. Qual o lado que você vai escolher? As variáveis são muitas, e tudo o que eu sei fazer desde que nasci é lutar. Como que se para de ser um soldado sem sentir falta do campo de batalha?

7.

Às vezes meu corpo não é o meu corpo. Eu não estou muito bem aqui, às vezes. Há um certo rigor em me manter presa a essa terra, então eu não dou a mínima sobre estar aqui. Há uma garota parada na porta, e deus, como você deseja que pudesse amá-la. A garota está sempre lá, nunca encarando você de frente. Uma mão quer arriscar alcançá-la, chamar sua atenção, por favor me dê atenção, me veja, eu estou aqui, na verdade não estou aqui mas meu corpo está, vire, olhe pra trás; a outra mão te segura firme, cravando as unhas na tua pele para que o leão venha e tome o controle. Novamente, você deseja que pudesse amar a garota. Você deseja poder implodir as milhares de camadas das muralhas ao seu redor, porque deus sabe que você sente falta de um toque, do som metálico que seu dedo faz ao percorrer o corpo alheio. É tudo sobre corpos, e em certo momento você se diz que tudo bem não pertencer a um, que um dia num futuro distante você vai conseguir um corpo que você ame tanto que queira construir um jardim ao redor dele, não muros. É tudo um pouco de arte.

8.

Não foi difícil me acostumar a ser confundida com lobos. O sangue escorrendo entre meus dentes, a fúria incessável, o instinto quase sobrenatural — eu entendo por que as pessoas pensam que eu sou um lobo. Eu sou um leão — minha matilha se resume a poucos, tenho um certo complexo de deus e o sangue em minha boca nem sempre é totalmente estrangeiro. Não que eu tenha escolhido ser um leão, a gente não escolhe as garras que recebe. É um ciclo infinito isso, eu continuo escavando dentro de mim mesma como se minha próxima presa estivesse lá e eu vou te dizer, não está. Mas mesmo assim eu continuo esse ritual. É quase banal, tal como escovar os dentes ou colocar o braço na frente de alguém que você ama quando o perigo se apresenta. Há tanto amor inutilizado dentro de mim, do tipo que entra em prédios em chamas pronto para o resgate e te jura fazer o que você quiser basta apenas deixar que eu te salve. Meu sangue pode ser seu sangue basta você dizer algo, eu fico esperando que você diga algo, mas você nunca diz.

9.

Eu não sinto nada. Sobre você, sobre meus melhores amigos, sobre meus pais, sobre meus irmãos. Não sinto nada sobre vídeos de bichinhos, sobre doces, sobre filmes de comédia, drama, terror. Não sinto nada sobre paisagens bonitas, sobre minhas pinturas favoritas, sobre músicas que tinham a obrigação de me tocar. Você acha que é algum tipo de castigo por todas as vezes que eu disse que não tinha sentimentos, lá atrás bem antes do grande dilúvio? Deus, o universo? Eu te disse, ele não se importa sobre questões maniqueístas. É tudo tão maior que isso, que eu, que nós. Diga a eles que morri ainda cravando meus caninos na pele do inimigo, que eu parti livre de toda a fúria. Não é somente meu sangue em minha boca, em minhas mãos, em meus braços; por alguns momentos eu aprecio a vista da minha pele vermelha como a de meus antepassados. Há certa tranquilidade no fato de que a anestesia produzida pelo meu próprio corpo não tem prazo de validade, e que continuar não me importando com o que acontece ao meu redor talvez seja o melhor mecanismo de defesa que minha mente já criou. Num canto frio da minha cabeça eu guardo minhas melhores lembranças de quando senti, o perfeito lugar para esconder meus melhores bens dos predadores que se tornam transeuntes do local quando a noite cai.

10.

Eles dizem que há um truque para tentar alcançar o sol e não se destruir no processo. Eu tenho procurado alguém que me conte algum segredo como esse, mas só encontro engôdos. Querendo ou não eu estou presa a esse corpo, e de algum modo eu queria que fosse possível te mostrar como são as coisas dentro de mim. Eu queria te mostrar que eu te amo e nunca vou deixar de te amar, por que eu não acredito no fim desse sentimento. Eu te amo hoje como vou te amar daqui há 20 anos mesmo se eu estiver morta, eu te amo aqui do meu lado como vou te amar se você estiver em outro planeta. Não há nenhuma prova dentro de mim que corrobore minhas sentenças, mas eu sei que eu amo você por que eu morreria por você. E eu sei que você é uma parte da minha alma por que eu voltaria dos mortos por você. Não sei bem se você sabe de quem eu estou falando, é você sim. Toda e qualquer pessoa que eu já disse que amo. As evidências que me faltam são preenchidas com as memórias com as quais eu me agarro, mesmo nos meus piores dias. Eu olho minhas cicatrizes e conto as batalhas que já venci, porém elas parecem quase nada perto do que consigo prever da duração da guerra. Minha mente quer fazer planos para o futuro, ter um futuro, não imaginar um jeito diferente de morrer todas as vezes que eu fecho os olhos. Na minha mente, eu quero voltar a sentir de novo; qualquer coisa além da fúria ininterrupta do leão. Eu quero saber como é o sentimento de ser digna de amor alheio, e não querer morrer disso. O universo é enorme e vasto e se expande todos os dias todos os momentos, e minha sede incessável de mais e mais e nunca estar satisfeita poderia ser nada perto de me sentir eu novamente, um eu que não conheço ainda porém que gostaria muito de conhecer. A imagem que eu vejo quando olho no espelho parece ser etérea, parte por parte sendo um quebra cabeça mal montado. Não há nenhum outro sentido de continuar vivendo se não for para sentir amor ou para tentar alcançar o sol. Dizem que há um truque para alcançar o sol e conquistá-lo; um castelo de ouro guarda seu trono e sua coroa é feita de lava e vidro, de uma beleza que só quem entende que destruição também é uma forma de criação pode compreender. Há um truque para alcançar o sol e conquistá-lo: ateie fogo em si mesmo e queime.