terça-feira, 26 de julho de 2011

Waterproof.


Baunilha.

Só Deus sabia o quanto aquele apartamento de numa rua qualquer no subúrbio cheirava infernalmente a baunilha. Cada pedaço, cada buraco, cada cômodo daquele lugar cheirava à baunilha, à ele e isso fizera com que Maria tivesse passado a detestar viver naquele lugar como um albino detesta raios solares. Era um dia deprimente - completamente nublado e uma fumaça insuportável vindo dos carros da Avenida lá embaixo - e parecia se arrastar como uma lesma. Maria fechou os olhos e foi como se toda a noite anterior voltasse a ser exibida em sua mente, numa sessão de cinema noir que ninguém paga poucos centavos para ver. A não ser ela, que era uma das protagonistas.

De tudo, o que sua memória não poderia nunca apagar eram as frases que a estilhaçaram como se tivesse sido alvo de uma bomba. Nunca pensara antes que algumas simples palavras pudessem mudar tudo o que ela sabia sobre si mesma ou pensava saber. Ele também nunca foi uma pessoa aberta e talvez fosse por isso que se davam tão bem. Seus casulos longe do mundo se fundiam em um só e tudo estava em seus devidos lugares no Universo. Ela sentia como se, depois de todos aqueles anos não só de união amorosa mas também de amizade, ele tivesse esperado esse tempo todo para jogar-lhe isso na cara. Se ela aprendeu alguma coisa em sua não tão longa vida, foi nunca se auto proibir. Sempre disse o que quis na hora que quis e, como poucos fazem, ouviu o que não quis com toda a dignidade de aceitar opiniões alheias que sempre possuiu. "Você é tão fria, Maria. Tem um pedaço de um iceberg dentro do peito. Você nunca deixou ninguém entrar na sua fortaleza, por mais que eu tenha tentado milhares e milhares de vezes." Não sei se a reação que ela esperava ter era colocá-lo porta afora ou atingi-lo com o objeto mais próximo, porém tudo o que fizeram foram se olhar por longas e infinitas horas. A luz solar já invadia o quarto através das persianas e finalmente ele se levantou e foi embora. Simplesmente, sem dizer mais nenhuma palavra, foi embora. 

A impressão que teve ao descer do apartamento foi que estava entrando em pleno processo de denial. Tudo à sua volta parecia barulhento demais, sujo demais, irritante demais. Era como se todas aquelas pessoas estivessem numa realidade diferente da de Maria, uma realidade muito melhor e mais bonita. E ela estava completamente sozinha. Sozinha naquela calçada, naquele bairro, no mundo inteiro. Sentia vontade, pela primeira vez em muito, muito tempo de chorar até que a água que havia em seu organismo se acabasse e pusesse fim àquele sentimento que ela não sabia controlar. A coisa que sempre mais detestou foi não saber com o que estava lidando. Desde sempre fora a Rainha de Copas, a que mantinha tudo em seus lugares perfeitos, a que nunca demonstrava fraqueza para outrem. Ele estar ao seu lado era tão normal quanto ainda estar respirando, quanto ainda ter pelo o quê levantar da cama todos os malfadados dias de sua vida. Maria era como uma esponja que absorvia tudo o que diziam ou faziam ao seu redor e quando ele simplesmente esquecia rápido demais como havia lhe machucado, ela tinha que fingir que tinha esquecido também. Mas ainda ficava lá, com todas as outras mágoas num canto bem profundo de sua memória.

Um carro bateu de uma hora para a outra em outro veículo e isso pareceu enlouquecer todos daquele trânsito infernal. O carro que recebeu a batida colidira com um hidrante e estava jorrando água para todos os lados. E então, para espanto de todos e grande quantidade de represálias, Maria começou a rir. Riu de todas aquelas pessoas medíocres tendo suas vidas atrapalhadas por um simples hidrante e por elas estarem todas molhadas com a bendita água que saía daquele empecilho. Riu também por que lembrara do que ele disse sobre ela ser intransponível, impermeável. Não importava mais. A água daquele hidrante molhava seus cabelos, sua pele, suas roupas e borrava sua maquiagem sobre uma noite mal dormida. E entravam nela, como se aquela água estivesse limpando-a por dentro também, como se estivesse tirando toda aquela dor de suas entranhas, como se pudesse levá-lo para um lugar tão longe de lá que nem ela mesmo sabia onde ficava. Maria é uma dessas pessoas que muitos pensam compreender, mas poucos chegam perto disso. Ela sabia muito bem o que devia fazer ou sentir o tempo inteiro, a vida inteira. E optou pelo admirável mundo só seu, embora que ele fosse parte tão grande dela que Maria mal sabia o que esperar dos próximos dias. No entanto, não estava morta. Daria muitos motivos para todos eles pensarem porquê ela ainda estava sorrindo.

Música do post: Black Balloon - The Kills

4 comentários:

  1. Incrível!
    Maria é muito forte e muito inteligente.

    "No entanto, não estava morta. Daria muitos motivos para todos eles pensarem porquê ela ainda estava sorrindo."

    Esse final deu vontade de deixar rolar uma lágrima.

    Belo texto, um beijo.

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  2. Tens o talento para contos, moça! bjs

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  3. Oie, sou do blog http://deixa-me-ser-entao.blogspot.com/

    ...
    Adorei seu blog, e já me tornei seguidora.
    Beijos, e bom fim de semana. :D

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