terça-feira, 8 de novembro de 2011

Se você pular, eu pulo.

"O inferno que vem de você é o céu que eu sempre sonhei."


O ar quente que subia do rio parecia não condizer com a temperatura do resto da cidade. Seu rosto começava a suar, por mais que não estivesse sentindo tanto calor assim. Mantinha os olhos fechados - como se não quisesse se dar conta do que estava fazendo e onde estava - e a noção de tempo já não lhe pertencia mais. O vento lhe passava por todo o colo e a nuca, já que havia cortado os cabelos o máximo que conseguira. Estava pronta para dar mais um passo adiante e cair na imensidão da água lá embaixo quando ouviu uma voz ao longe cantarolar: Súbito me encantou, a moça em contraluz. Arrisquei perguntar: quem és? E então afastou seus pés da borda, tentando achar o dono da voz. Antes que pudesse se virar completamente, sentiu uma fumaça quente atingir seu pescoço fazendo com que todos os pêlos dele se arrepiassem. Ao levantar seus olhos, viu um rapaz não muito mais alto que ela e que nunca havia visto antes em sua vida. E então ele repetiu: Arrisquei perguntar: quem és? 

- Rita. Me chamo Rita.
- Você fuma, Rita? - perguntou ele, dando mais uma tragada. A fumaça fazia seus olhos castanhos cintilarem.
- Não.
- Você bebe, Rita?
- Água.
- Você vive, Rita?
- Por enquanto.

No rosto do moço estava esboçado um sorriso que não se apagava jamais. Jogou o cigarro no chão e pisou em cima dele, aproximando-se da moça. Suas mãos, antes soltas no vento, agora seguravam a borda da ponte. 

- Acredita em alienígenas? - perguntou ele.
- Eu tenho que acreditar, afinal sou uma deles. Estive esperando a minha vida inteira para voltar para casa.
- Você é engraçada.
- Você fede a nicotina.
Mas oscilou a luz, fugia devagar de mim...
- Você só conhece essa música?
- Você só conhece o suicídio?
- Quando se vive na escuridão, tudo o que se deseja é um pouco de luz.
- Quer se inundar dela para sempre, mas isso é humanamente impossível. Tudo o que você precisa é ser tocada. Por si mesma, pelos outros. Estando aqui eu te toco também. 
- Ninguém tem nada a ver com o que se passa dentro de mim. Às vezes me pergunto até que ponto é papel dos outros segurar a barra que carrego quando eu estiver fadigada de tal coisa. Me parece mais fácil não incomodar ninguém e abrir um sorriso satisfatório dizendo que está tudo na mais perfeita ordem enquanto enquanto eu morro um pouco mais por dentro. Ninguém precisa tomar conhecimento do que me mata, assim como falar só faça com que eu me sinta idiota. Eu estava aguentando tudo isso sozinha, Deus sabe como eu estava. É muito fácil se isolar e esperar que a piedade alheia apareça, enquanto você se afunda nos restos do que já foi e viveu. É muito fácil se trancar num quarto e ignorar o resto do mundo, esperando que tudo desapareça. Difícil é levantar e andar na rua todos os dias sem perspectiva de um futuro melhor, já que o futuro virará passado depois da meia noite e todos sempre são iguais. Difícil é amar e sentir como se esse sentimento fosse errado, se sentir parte da parcela da humanidade que tem que se alimentar apenas de lembranças que nunca foram reais. Difícil é tentar se amar mesmo quando tudo o que você quer é apagar completamente durante dias sem fim. 
- Está tarde, vamos comer um sanduíche. Eu pago.
- Adeus.
- Se você pular, eu pulo. E levo aquela lua junto conosco. Levo o mundo inteiro. 
- Aonde você quer chegar com isso? 
E quando a segurei, gemeu - disse ele, pondo seu corpo para o lado de fora da ponte onde ela estava e passando o braço em volta de seu quadril. - O seu vestido se partiu e o rosto já não era o seu.
- Porque você não me deixa?
- Porque você se deixou. 

(silêncio)

- Está tão frio.
- A água lá embaixo está muito mais.
- Todos me deixaram. Todos sabiam que eu pularia, e nenhum deles tentou me impedir. E você, um estranho, está aqui. 
- Eu tenho todo o tempo do mundo para te salvar - e então segurou a mão da moça. - Não irei a lugar algum.
- Todo o tempo do mundo acabará se eu pular.
Um lugar deve existir, uma espécie de bazar onde os sonhos extraviados vão parar.
-  Você é maluco, já te disseram isso?
- Não era eu que queria me jogar da ponte, moça. Moça do meu sonho.
- Já sonhei demais, e me perdi. Todos se perdem e enlouquecem, menos você. Menos eu. 
Entre escadas que fogem dos pés e relógios que rodam pra trás, se eu pudesse encontrar meu amor, não voltava jamais.
- Você acredita em vida após a morte?
- Acredito em morte após a vida. Só se tem uma, então não a desperdice. Sonhe comigo, moça. 
- Eu quero o paraíso.
- Durma comigo esta noite. Sonhe comigo.
- Quero um vôo livre, mas não quero que a queda doa. 
- Segurarei você, eu prometo. Voe, moça do sonho. O mundo é seu. Não irei a lugar algum - sem você. 
- Você tem asas?
- Sim.
- E qual foi o lugar mais bonito onde já esteve?
- Em seus olhos.

Música do (e que é citada no) post: A Moça do Sonho - Chico Buarque

3 comentários:

  1. Você não cansa não? Não cansa desses textos lindos que você escreve? Nem eu.

    "- E qual foi o lugar mais bonito onde já esteve?
    - Em seus olhos." ♥_♥

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  2. É, minha querida pequena, te confesso que li e reli seu texto. Algumas vezes. E ele realmente ficou na minha cabeça. Lembra de quando eu analisava seus textos como um intelectual metido a besta? Pois é, parei!

    Li e reli seu texto. Ainda não consegui saber muito bem do que ele fala. No fundo, o bom é isso. às vezes, ele parece de amor. às vezes, de despedida. Outras parece de dor, melancolia, solidão.

    No fundo, no fundo. Você é uma das poucas pessoas que escrevem, e que conheço, que conseguem fazer de seus textos um espelho próprio. No fundo, no fundo, sempre que leio um texto seu o que me parece é que você está sempre falando de você.

    Mostrando a beleza que existe dentro desse seu coração, que acolheu esse bobo como amigo, sem bem saber o que fazia.

    Obrigado por sempre nos presentear. Com suas palavras vindas diretas da alma.

    Beijo, minha pequena!

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  3. Meu Deus. Que lindo, daria sim um belo livro, um conto maior. Apenas esse diálogo me encheu de tamanha curiosidade por esses dois.
    Muito bom. Muito mesmo.

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