sexta-feira, 3 de junho de 2011

A humanidade ainda não conhece o paraíso.

Texto dedicado a Caio Fernando Abreu (12/09/48 — 25/02/96), por tudo o que mudou na minha vida desde conheci suas obras. Não tive a chance de te conhecer para dizer isto, mas obrigada por tudo. Você é eterno. 


Fazia pouco tempo que ele tinha partido para a guerra. Uma coisa horrível - gente que perdia braço, perna e que nem mesmo voltava pra casa. E se voltava, nunca mais era a mesma pessoa. Ainda lembrava dele parado ali na porta, com uma mochila nas costas e um sorriso no rosto. Um sorriso quase de menino, quase de adeus. As palavras dele ficaram presas em sua mente como se tivessem sido pregadas com mãos ferrenhas. Parecia egoísta pensar que ele deveria ter ficado e não ter se metido no meio de uma trincheira jogado à própria sorte. Como se todo mundo não achasse essas guerras, em plenos anos 50, a coisa mais imbecil isso de ficar arriscando a vida por uns porcos capitalistas. Todos os homens, garotos, meninos que se aventuravam nessa viagem muitas vezes sem volta deveriam estar dançando nos pubs ao som do bom Elvis "The Pelvis" Presley, o Rei. A vida era muito mais fácil quando tudo o que tinham que fazer era somente se divertirem. Principalmente eles dois. Viviam juntos - até mesmo nos sonhos, quando ninguém poderia xingá-los de todas aquelas coisas feias. Gostavam de estar juntos, não só pela descoberta de estar com alguém do mesmo sexo, mas também pelo imenso carinho que brotava entre eles dois e em todo o espaço físico que os prendia, juntos. Quando um foi para a guerra e o outro ficou na cidade por causa de uma escoliose, parecia que um dos muitos ciclos que há nessa vida foi quebrado. O que se fora, com seus grandes olhos azuis e dentes brancos como leite, fez questão de deixar um pedaço seu impregnado em cada parte do outro, que ficou. E isso fazia com que durante todos os meses que o que partira passou longe doesse um pouco menos. O que ficara aguentava firme todos os dias. Algumas pessoas tem uma ligação que vai tão mais além do toque, do físico que ultrapassa as barreiras, ultrapassa oceanos. O que ficou sabia que sempre podia sentir o que partiu por perto. Ele estava lá, apoiado sobre o cotovelo, quando procurava alguma carta na caixa de correio e ela estava vazia. Olhava-o de forma triste quando tinha algum pressentimento ruim e segurava sua mão tentando fazer com que ele comesse algo. Era mais do que carinho, mais do que companheirismo, mais do que simples necessidade carente. Era amor. Não importava o que os outros pensassem nem o que diriam, era amor. Era amor e todos deveriam saber. Era amor e todos deveriam sentir para entender o que é. Era amor, e todos deveriam ser amados assim alguma vez na vida. Ganha-se o dom de passar algum tempo neste planeta e tu tem que fazer com isso o melhor que puder. Tudo passa tão rápido. Não vale a pena se prender a mesquinharias, coisas pequenas. Pois tudo isso aí, essas coisas que você acha "da moda", tão "minha-vida-acabará-se-eu-não-tiver-isso", passa. O amor e todas as outras coisas boas e puras ficam. Você chega a este mundo sozinho, mas não precisa caminhar sozinho durante sua jornada. Você é amor. Você é a explosão de tudo o que há de bom no universo. O moço, o que ficara, mal conseguia ler a carta de tão trêmulas que suas mãos estavam. O papel - coisa fina, o governo não economizava nessas coisas - agora era só mais uma parte do carpete. O que partira, o moço de olhos d'água, partiu. Não havia mais graça no mundo, nem voz do rei na vitrola. Eram só cinzas de um paraíso destruído.

2 comentários:

  1. Jaci, eu gosto tanto do modo como você escreve que você nem imagina. É uma complexidade tão simples, tão bonito e gostosa de ser lida. "Era amor, e todos deveriam ser amados assim alguma vez na vida." Todos deveriam ser amados assim alguma vez na vida, concordo. Tava com saudade de vir aqui, beijão :*

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  2. Amar é mesmo um paraíso com uma pitada ardente do inferno. Caio é maravilho e acho que ele muda o interior de quem o lê e compreende. Adoro a tua escrita, beijinhos.

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